sábado, 24 de julho de 2010

JOÃO HAVELANGE: A “CARA” E A “COROA” DO FUTEBOL MUNDIAL*



Por Adriano C. Tardoque

É fundamental para a compreensão de alguns dos principais aspectos do futebol brasileiro, traçar a sua relação com o período da ditadura no país (1964-1985), sobretudo a tutela militar do esporte e a sua abertura mercadológica, como parte da trajetória do ex-presidente da CBD e da FIFA, João Havelange. Ele esteve a frente da entidade máxima de administração do futebol brasileiro, presidindo a CBD dentre 1958 e 1970. Após a conquista do bicampeonato de 62 e o fracasso de 66, impõe mudanças fundamentais nas estruturas da Seleção Brasileira,  principalmente ao criar uma Comissão Selecionadora Nacional (Cosena), com base na disciplina militar, refletindo a condição política do país, naquele momento. Tão logo o órgão não apresenta os resultados desejados, frente à pressão de federações, clubes e diferentes interesses, somados aos maus resultados em campo obtidos pela seleção, derivam em seu encerramento. Na ânsia de acertar os passos da seleção brasileira, Havelange não abre mão de nenhum tipo de artifício: contrata como técnico o jornalista e radialista João Saldanha, que expressava valores contrários a condição golpista da política brasileira e era acusado de “comunista”, despertando assim a antipatia da imprensa paulista (pela escolha de um carioca para o cargo) e por parte de núcleos militares conservadores, que não acreditavam ter um "comunista" no comando do selecionado (falava-se em "rendição" a um “inimigo”). Os frutos dessa empreitada causaram surpresa:

“Assumindo o cargo, o novo técnico fez bom uso da geração privilegiada que tinha em mãos e angariou uma série de triunfos, aproximando a Seleção do homem comum, dos militares e até mesmo dos militantes de esquerda. Estádios ficavam lotados e o hino Nacional voltou a ser cantado sem a pecha de adesão à ditadura que passou a caracteriza-lo a partir de 1964. Uma pesquisa feita no Rio, apontava a popularidade de Saldanha: 71%. Os paulistas, em fim rendidos ao bem-sucedido desempenho do técnico, não ficaram muito atrás: 68%. Mesmo com estes índices, por mais que Saldanha estivesse consolidado no cargo, as tensões políticas cresciam em um país marcado pela repressão, que viera à tona na esteira do AI-5*, de Dezembro de 1968. Detentor do bicampeonato, o futebol brasileiro não podia passar incólume pela obsessão legitimadora que o governo militar perseguia permanentemente, passando a interferir cada vez mais nas esferas do esporte.” [1]

Em 31 de agosto de 1969, é anunciado aos brasileiros o Ato Institucional n.º 12 que transfere os poderes presidências para uma junta militar. No mesmo dia em que o Brasil joga sua última partida pelas eliminatórias para a Copa de 70, contra o Paraguai, partida que venceu por 1 a 0, com gol de Pelé. A classificação para a Copa do México, que poderia surtir como a estabilidade de Saldanha frente o comando da seleção brasileira não se confirma. As pressões políticas sobre o esporte mais popular do país são intensas. Quando em outubro de 1969, o general Emilio Garrastazu Médici assume a presidência, tomou uma série de medidas que articularam futebol e massa torcedora, com destaque a Loteria Esportiva, em 1970:

“Médici assina o decreto que instituía a loteria Esportiva no país, procurando conciliar o esporte com a sorte, enriquecimento fácil e chance de mobilidade social para todos. Válido inicialmente para Rio de Janeiro e São Paulo, o presidente prometia que até a Copa o jogo seria ampliado para todo o Brasil”.[2]

Dentro de campo, o Brasil sofria algumas derrotas em amistosos. Fora dele, a comissão técnica dividida e as críticas de outros treinadores se intensificam. Foi neste momento, em que o time está considerado “desarrumado”, que aconteceu um evento que envolve diretamente o presidente e João Saldanha. Consta que o presidente Médici teria sugerido a escalação de Dadá Maravilha como uma possível solução ao time. Diante desta colocação, Saldanha teria respondido: “Pois olha: o presidente escala o ministério dele que eu escalo meu time”. Decerto, a figura do treinador “não descia” para os militares, e qualquer motivo frente o atual momento da seleção era o suficiente para aumentar a instabilidade:

“Não se sabe ao certo se Médici estava tão empenhado na escalação de um jogador específico, em um momento em que os desafios governamentais eram muito grandes. Certo sim é que a figura de Saldanha era considerada muito inconveniente pelo seu destempero e por propalada independência. Temia-se que o treinador chegasse ao México com uma lista de presos políticos no bolso, e, em entrevista coletiva, diante dos microfones e câmeras do mundo todo, denunciasse o desrespeito aos direitos humanos que vinha ocorrendo no Brasil. Mais do que Dario ou episódios envolvendo jogadores e técnicos, esta era uma preocupação muito séria para a imagem que a ditadura queria promover de si mesma no exterior. E como bem ou mal Saldanha era popular, pretextos paralelos ganharam mais projeção do que deviam, condicionando a queda do treinador principalmente a problemas com Pelé, com Yustrich – técnico que cobiçava o cargo – ou com um amistoso contra o Bangu, em que a seleção brasileira jogou muito mal. Alguns dias depois a comissão técnica foi “dissolvida” e Mário Jorge Lobo Zagallo, que treinava o Botafogo, foi apresentado como sucessor de Saldanha”. [3]

Logo, com o afastamento da comissão técnica antiga, João Havelange passa a atuar livremente e passa a trabalhar sua proposta de militarização da delegação brasileira que seguiria para o México:


“Esta era chefiada pelo major–brigadeiro Jerônimo Bastos, com a segurança ficando a cargo do major Ipiranga dos Guaranys, além de contar ainda com os militares Cláudio Coutinho, Raul Carlesso e José Bonetti, alguns deles integrantes da antiga Cosena”. [4]

As regras disciplinares competem desde os cabelos cortados ao estilo militar, passando por intensa preparação física e inflexibilidade com horários e compromissos. O historiador Gilberto Agostino aponta que “contraditoriamente, a Seleção se transformaria, dentro em campo, em paradigma do verdadeiro futebol-arte que tanto se fala desde então. A cada vitória, uma aclamação popular que parecia legitimar o próprio regime” [5].

Paulo César Caju, jogador que atuou nas décadas de 60 a 80 em diversos clubes dentro e fora do Brasil, como Botafogo, Flamengo, Fluminense, Vasco, Grêmio e Olympique de Marselha (França), disputando também duas Copas (1970 e 1974), sempre foi conhecido pelo temperamento contestador: “Há uma indisciplina, porém, a Paulo César, que a CBD não digere: a do jogador que assume a sua identidade de proletário e, ao assumi-la, denuncia o sistema, reivindica direitos de trabalhador qualificado e lidera os demais”[6]. No entanto, em entrevista recente concedida a uma revista de esportes, parece concordar com o sistema de trabalho imposto pelos militares na Copa do tricampeonato. Quando indagado se os militares atrapalhavam ou influenciavam demais no time, respondeu:

“Não. Naquele time nós tínhamos o Pelé, que já era bicampeã mundial pelo Santos e bicampeão mundial pela Seleção, em 58 e 62. Então seguimos o que Pelé traçou para ele. Tínhamos o rei junto com a gente (...) Eles vieram com a disciplina que o futebol brasileiro não tinha. Estabeleceram rigidez, treinamento, horários, coisas que nós sempre precisamos. É uma competição de um mês e sem essa disciplina não se vai a lugar algum (...) Nós tínhamos liberdade e podíamos sair uma vez por semana, só isso. Acho normal. Se você tem um grupo que se entende bem, com o mesmo objetivo, não vejo problema nenhum”. [7]

O tempo é capaz de gerar concordâncias e aceitações impensadas em épocas passadas. Seguir o que Pelé traçou para seu próprio caminho, certamente traz compreensão do envolvimento dos atletas com o regime, como fica claro quando analisada de forma mais aprofundada a trajetória do Rei do Futebol.

Em 1972, organiza um torneio chamado Taça Independência, em comemoração ao sesquicentenário da Independência do Brasil, que contou com a presença de vinte seleções. Alemanha, Inglaterra e Itália não participam do evento, compreendendo que a mesma direcionava-se a fins políticos. Pelé, finalmente, se nega a participar por entender (tardiamente!) que a ditadura tem feito uso de sua imagem para se legitimar no exterior. Contudo, ainda assim esteve diretamente ligado ao processo que elegeu Havelange a presidência da FIFA

“Apesar de não ter jogado a Taça Independência, Pelé foi uma figura central na eleição de Havelange para a FiFA. Desde o final dos anos 60, a relação entre os dois vinha se estreitando, muito em parte em função das necessidades do jogador, que perdera um bom dinheiro em uma série de negócios em Santos. Em 1969, em um dos lances mais citados na carreira do Rei, Havelange organizou uma excursão da equipe santista à África, já pensando nos votos que poderiam ser colhidos nas federações Africanas. Após passarem por diversos países, o pretendente ao cargo maior da FIFA, divulgou a história de que o carisma de Pelé interrompera a guerra civil da Nigéria, versão até hoje repetida como demonstração não só do mito em torno do jogador, mas também da capacidade de conciliação que o esporte pode propiciar. Posteriormente, à medida que a relação entre os dois foi esfriando, Pelé apresentou uma versão um pouco menos romântica da história (...) “nós jogamos na capital da Nigéria (a região de Biafra estava em guerra, iniciada em 1967 e encerrada três anos mais tarde), e o que aconteceu foi que o governo destacou um baita contingente militar para nos proteger, impedindo que a cidade fosse invadida enquanto estivéssemos lá”.[8]

Eleito presidente da FIFA em 1974, João Havelange conciliou durante pouco tempo a presidência da CBD com a do órgão internacional. Com o desgaste das relações com os militares, agora representados na figura do general e presidente Ernesto Geisel (que a esta altura vigiava através do DOPS tanto o dirigente quanto o próprio Pelé), é afastado em 1975, assumindo entidade máxima do futebol brasileiro o almirante Heleno Nunes, autor da "máxima" frase sobre a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido governista dos militares: “Onde a Arena vai mal, um time no Nacional!” [9].

A tendência do pensamento de mercado voltado para o futebol, ganha força no futebol mundial quando João Havelange, que assumiu a presidência da FIFA em 1974, emprega-lhe novo formato. A visão comercial e a disciplina são as chaves para o sucesso de sua administração. Sua influência atinge dimensões não imaginadas nos meios futebolísticos:

“Em 1974, depois de subir muito, Jean Marie Faustin de Godefroid Havelange conquistou a cúpula da FIFA. E anunciou: 'Vim vender um produto chamado futebol'. Desde então, Havelange exerce o poder absoluto sobre o futebol mundial. Com o corpo grudado no trono, rodeado por uma corte de vorazes tecnocratas, Havelange reina em seu palácio em Zurique. Governa mais países que as Nações Unidas, viaja mais do que o Papa, e tem mais condecorações que qualquer herói de guerra (...) Havelange nasceu no Brasil (...) mas suas opiniões são pouco brasileiras. Um jornalista inglês, do Times de Londres, lhe perguntou: 'O que lhe dá mais prazer no futebol: a glória? A beleza? A vitória? A poesia?”. E ele respondeu: A disciplina' (...) Este idoso monarca mudou a geografia do futebol e transformando-o num dos mais esplêndidos negócios multinacionais. Em seu mandato, dobrou a quantidade de países nos campeonatos mundiais: eram dezesseis em 1974, serão 32 em 1998. E pelo que se pode adivinhar através da neblina dos balanços, os lucros que esses torneios rendem multiplicam-se tão prodigiosamente que aquele famoso milagre bíblico, o dos pães e os peixes, parece piada (...) Os novos protagonistas do futebol mundial, países da África, Oriente Médio e Ásia dão a Havelange uma ampla base de apoio, mas seu poder se nutre, sobretudo, da associação com algumas empresas gigantescas como a Coca-Cola e a Adidas. Foi Havelange quem conseguiu que a Adidas financiasse a candidatura de seu amigo Juan Antonio Samaranch à presidência do Comitê Olímpico Internacional. Samaranch, que durante a ditadura de Franco (na Espanha) soube ser homem de camisa azul e braço estendido (referência ao fascismo), é desde 1980 o outro rei do esporte mundial”. [10]

Com as portas abertas para o investimento de patrocínio, tanto os selecionados dos países quanto dos clubes, passaram a ter em seus jogadores, o foco principal da divulgação de marcas e grifes. Esse fenômeno tomará maiores proporções proporções nos anos 80, explodindo definitivamente na década de 90, criando novas configuração de contratos de trabalho para os atletas, dificultando ainda mais a questão do profissional de futebol quanto a sua organização em classe trabalhadora, uma vez que nem todos os contrato atendem ao interesse coletivo e da agremiação, privilegiando os ídolos do esporte em franca evidência, definidos hoje como "galácticos".

[1] Agostino, Gilberto. “Aquela corrente pra frente”. In: Nossa História. Ano 2 / n.o 14 – Dezembro/2007. p.16
[2] Idem. p.17
[3] Idem. p.18
[4] Idem. p. 18
[5] Idem. p. 19
[6] Santos, Joel Rufino. História Política do Futebol Brasileiro. p. 89
[7] Merguizo, Marcel. “Caju com açúcar”. In: A+ - A Revista do LANCE. Ano 7/ número 297. De 20 a 26 de maio/2006.
[8] Agostino, Gilberto. “Aquela corrente pra frente”. In: Nossa História. Ano 2 / n.o 14 – Dezembro/2007. p.20
[9] Idem. p. 20
[10] Galeano, Eduardo. Futebol ao Sol e Sombra. p. 143-144

* Publicado originalmente como capítulo com o título "João Havelange: a nova 'cara' e a velha 'coroa' do futebol" da monografia A Construção da Democracia Corintiana para Trabalho de Conclusão do Curso de História na Universidade Nove de Julho, em 2006, sob orientação do Professor Fabio Franzini.

ATENÇÃO: Para quem acredita que João Havelange não "apita" mais nada:


http://globoesporte.globo.com/ESP/Noticia/Futebol/Campeonatos/0,,MUL166569-9790,00.html

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