Leônidas da Silva, ídolo do futebol brasileiro é recebido por Getúlio Vargas
No ano de 1933 o futebol brasileiro alcançava a profissionalização, tanto pela força e talento de negros e mulatos, quanto pelo processo sem retorno da popularização do esporte, que já possuía ampla cobertura dos meios de comunicação escrita e radiodifusão1. Paralelamente na política, a burguesia industrial se aproximava do governo de Getúlio Vargas que acabara de derrotar a Revolução Constitucionalista de 1932 e desejava promover a industrialização do país.2 Juntamente com os interesses da indústria, surgiram os interesses do operariado que nela trabalha e se organiza em representações sindicais, buscando melhores condições salariais e de vida. Com uma nova Constituição, em Julho de 1934, o estabelecimento da pluralidade e da autonomia sindicais apresenta por um lado à vitória dos interesses da igreja (atuante frente às questões sociais) e do patronato. Por outro, foi um golpe certeiro no movimento sindical que desejava a unidade das classes e para o Ministério do Trabalho, que partilhava da mesma ideia, mas sob orientação estatal.3
O contexto político-social da época fez com que os segmentos da sociedade repensassem sua condição dentro da nova realidade que se instalara no país. O futebol como meio expressão e participação social, logo tem seu oficio redimensionado, pelo investimento estatal que visava à consolidação da relação de apoio das massas ao governo vigente:
“(...) Olhando em perspectiva histórica, talvez seja precisamente esse o aspecto mais importante, embora até hoje pouco notado, da participação brasileira na Copa de 1934. O então presidente da CBD era Luiz Aranha, irmão do ministro da Fazenda Oswaldo Aranha, ambos revolucionários de 30 e diretamente ligados ao presidente Getúlio Vargas, enquanto o chefe da delegação que foi a Itália era Lourival Fontes, diretor da secretaria geral do gabinete do interventor do Distrito federal, e que anos depois, já no Estado Novo, viria a ser diretor do todo-poderoso Departamento de imprensa e Propaganda (DIP). Essa íntima relação entre o poder e o esporte não escapou à Folha da Manhã, que, sem meias-palavras, atribuía à “situação política dominante” o fato de Luiz Aranha estar frente a CBD – de onde, aliás, defendia a oficialização dos esportes como “medida necessária, tendo em vista a influência do esporte para tornar conhecido o país.”4
Leônidas da Silva, craque de futebol que enchia os estádios na década de 30, e cuja fama serviu como um mecanismo de comunicação entre governo e as massas, demonstrava-se seduzido pela Estado Novo, em declaração no ano de 1941: “graças a Deus em qualquer parte do território nacional, mercê do Estado Novo, que tanto tem felicitado o Brasil, vive-se já num ambiente de inteira liberdade as claras (...) Profissional de futebol não é escravo.”5
As relações e demandas criadas nas próprias entranhas do esporte vão gerar movimentos pró-condições de trabalho e salário, para os atletas que viviam exclusivamente de sua prática:
“Tanto o manifesto dos jogadores paulistas quando o êxodo de craques para o exterior revelam que os atletas percebiam muito bem, e não aceitavam mais, a situação contraditória que viviam no início da década de 30, Mesmo que fizessem do futebol sua única profissão, o que era cada vez mais comum, eles não dispunham de qualquer garantia formal que lhes permitisse exercer trabalho com segurança e tranquilidade. A insatisfação, no entanto, não era demonstrada só por aqueles que entravam em campo. Muitos dirigentes cariocas e paulistas, bem como boa parte da imprensa esportiva, também estavam descontentes com as incertezas do semi- profissionalismo, ou, na expressão da época, “amadorismo marrom”. Para essas grupos somente a profissionalização poderia assegurar a força dos clubes e o vigor do espetáculo, à medida que criaria um vínculo mais efetivo e consistente entre jogadores e equipes (...) Para os jogadores , na verdade a profissionalização não consistia em mera questão de preferência. O futebol permitia a sobrevivência imediata e, quem sabe, a realização do sonho da ascensão socioeconômica para muitos daqueles que não encontravam oportunidade pelo trabalho.”6
Assim como as estruturas do futebol dão suas cartas, seus atores principais, os jogadores, estes os derradeiros responsáveis pelo jogo, darão as suas caras, a medida que veem a capacidade de transformação de suas vidas, em seus pés.
FAUSTO: O PRIMEIRO A REIVINDICAR
É no início da década de 30 que salta a figura de Fausto dos Santos ou, Fausto, “a Maravilha Negra”. De origem pobre, oriundo o interior do Maranhão, já na década de vinte, estabelecido no Rio de Janeiro, demonstrava sua habilidade e estilo elegante de jogo. Em 1927, transfere-se do Bangu para o Vasco da gama, no momento, único time brasileiro que permitia a atuação de atletas negros no time. Seu talento com a bola, era a sua única possibilidade de ascensão e perspectiva para uma vida melhor:
“Fausto sempre jogou futebol com raiva. Ia na bola como num prato de comida. Jogava sério e encarava o futebol como meio de escapar da pobreza, ganhar dinheiro para poder desfrutar a vida em gafieiras e rendez-vous, muita cachaça e violão. Os críticos chamavam-no de tudo – mercenário, acomplexado, exibido (...) Só não o chamavam de ingênuo. Fausto nunca confiou em cartolas. Nem teve ilusões sobre a discriminação racial, que no seu tempo já era ostensiva. Não alisava o cabelo. Não frequentava a alta sociedade, embora por muito tempo andasse com o bolso recheado e o retrato diariamente nos jornais. Quando tentaram feri-lo dava o troco na hora, ganhando a fama de rebelde, mas também o respeito dos que jogavam com ele (...) Fausto gozou da máxima popularidade permitida a um artista, antes do advento do rádio. Até mesmo Fried (Arthur Friedenrich, primeiro grande nome do futebol brasileiro, que atuou entre as décadas de 10 e 30). Que fora longe demais, ficou em segundo plano, pois Fausto se exibiu para plateias muito maiores, no Brasil e no exterior. A diferença maior entre os dois estava, porém, naquilo que ambos pensavam de si próprios. Fried encarava o futebol como status, fausto como profissão. Ele foi, com efeito, o primeiro proletário consciente do nosso futebol.”7
Contrapor ao sistema dos clubes e lutar por profissionalização, certamente acarretou em reações de antipatia e represália. Trabalhar para viver do futebol, como jogador profissional, era cada vez mais difícil para um negro de origem pobre:
“A carga era, de fato, pesada. De amador – e nunca lhe pagaram a metade do que valia – queria passar a profissional; da várzea, queria passar a estrela internacional – e todos os seus contratos no exterior foram rescindidos dramaticamente, no Uruguai, na Espanha, na Suíça; de “carregador de piano”, no modesto Bangu, quis passar a primeira estrela do Vasco e do Flamengo – e a cartolagem, certa feita, chegou a impedi-lo de jogar, acionando, para consumar a arbitrariedade, até o Departamento de Censura Federal (...) O conflito com Kruschner, técnico húngaro de enorme prestígio nos anos 30, que o empurrou para a humilhação e o sacrifício, ficou como exemplo do massacre a que estão sujeitos os que não se submetem – mas são fracos, e isolados, para resistir. Formalmente, o técnico estrangeiro tinha razão: a nova lei de impedimento, editada em 1925, matara o centro-médio. A questão porém, era de fundo: arte popular contra sistemas importados de jogo. As poucas vozes que então se ergueram para aprofundar o problema foram abafadas por um velho e arraigado preconceito da nossa crônica esportiva: o de que futebol nada tem a ver com política (...) Nos dois últimos anos de vida , Fausto criou a escola de centro-médios brasileiros: matada no peito, passadas elegantes, cabeça em pé, passe perfeito a qualquer distância. O meio de campo se tornou depois dele (...) a posição do “cobra” do time (...) A cada jogo, precisava provar que aquela inovação do WM era má. Terminava o primeiro tempo botando os bofes pela boca, e não agüentava o segundo. Adiantava? Não. Os críticos se enchiam mais de razão: Kruschner é que estava certo. O futebol tinha de evoluir. Em todo país, do Fluminense ao mais modesto time de várzea, começou a se jogar no WM. Diante da realidade, e menino pré de Codó (onde nasceu), que um dia pusera a Europa de joelhos, mais parecia um guerrilheiro desarmado.”8
A década de 30 passa e, apesar da profissionalização do futebol, bem como seu reconhecimento como patrimônio nacional, não são criados dispositivos legais que fundamentam a carreira dos atletas, ou lhe garantam qualquer tipo de benefício, mesmo em um momento de organização sindical e estrutural do trabalho no país. Sua popularidade e função junto ao público serão cada vez mais exploradas e apropriadas pelo Estado.
Na década 40, ainda sob a tutela militar o futebol acompanha a transição de poder de Getúlio Vargas para o general Eurico Gaspar Dutra, que inicia seu mandato em 1946, para concluí-lo no mesmo ano da ocorrência histórica da primeira (e única) Copa do Mundo no Brasil, em 1950. Como relata José Esmeraldo Gonçalves no artigo “Algumas Reflexões sobre o jogo da política”, no livro Futebol e Poder, observando a “disposição” do general para o esporte:
“Sede da copa de 50, o Brasil não mediu verbas para mostrar que aqui se praticava o melhor futebol do mundo. A queda do ditador Vargas abriu espaço para a redemocratização do país, mas as relações Estado-futebol não mudaram. Eurico Gaspar Dutra, o militar eleito para a presidência, em 1946, aprendeu rapidamente que bajular os clubes podia lhe render preciosos dividendos políticos. Na euforia que dominava o Brasil, às vésperas da Copa, Dutra doou ao Flamengo um grande terreno, no centro do Rio, para que o clube construísse a sua sede. Meses depois, eleito e de volta ao Catete, Vargas concedeu ao clube um virtuoso empréstimo, a juros baixos, a fim de que pudesse erguer no terreno doado, um prédio de 24 andares.” 9
No decorrer da década de 50 o estigma da tutela militar não está presente diretamente. Getúlio está de volta ao poder, eleito pelo voto direto, mas a pressão das fardas, indústria e economia são constantes. Na Copa da Suíça, em 1954, aos socos e pontapés, o Brasil é desclassificado pela Hungria enquanto que, com um tiro no coração, Vargas sucumbe à crise do país, saindo “da vida, para entrar na história”. Em 1955 Juscelino Kubitschek é eleito presidente, assumindo o poder e colocando seu Programa de Metas, com seis pilares: energia, transportes, alimentação, indústrias de base, educação e a construção de Brasília, como nova Capital Federal. A industrialização cresce em larga escala, e as grandes montadoras mundiais (Willys Overland, Ford, Volkswagen e General Motors), se instalam em solo brasileiro. Em meio à crise econômica, norteada pela inflação e o déficit público, o Brasil consagra-se Campeão da Copa de 1958, revelando ao mundo o talento de Pelé e Garrincha, reconhecendo-se assim como uma “indústria de jogadores”. No entanto, esta seleção apresenta uma peculiaridade do futebol brasileiro desde sua origem é ressaltada por Joel Rufino dos Santos, em História Política do Futebol Brasileiro: o preconceito racial. Segundo o autor:
“Que fique registrado para a História do Futebol Brasileiro, que os titulares, Joel e Dida, não eram cabeças-de-bagre. E De Sordi e Orlando – que ocupavam lugares de Djalma Santos e Zózimo – eram zagueiros regulares. Por que então os crioulos estavam de fora? Só havia um preto naquele time, quando entramos contra a Austrália, o mago Didi (seu reserva era também, um pretinho insinuante chamado Moacir) (...) Racismo? Nenhum jornalista que fez a Copa, nenhum jogador que dela participou, foi jamais taxativo a este respeito. Mas, era coincidência demais pretos na reserva e brancos que jogavam menos. Nossa cartolagem é suspeita em matéria de barrar jogadores pretos – desde Fausto, passando por Leônidas, Zizinho, Sabará – Sob pretexto de que não sabiam se comportar como cavalheiros. Talvez em 1958 não tenha havido discriminação ostensiva contra os escurinhos, mas, apenas a deliberação de fazer um time o mais branco possível.” 10
Ainda que a questão racial não seja o centro desta análise, certamente ela salta em inúmeras referências no decorrer das observações. Desde a origem da profissionalização, apresenta não só o ponto compreendido como “determinante e diferencial” no talento do jogador de futebol brasileiro, mas como o ponto de recusa de sua atuação frente a alguns segmentos da sociedade. A tutela militar sobre o futebol, que tem em uma de suas bases a questão da disciplina, cuja quebra das regras está presente em um senso comum discriminatório, sempre associado ao comportamento dos negros. E esse choque permanecerá nos anos conseguintes, mas atendendo a novas reconfigurações, conforme a necessidade dos que ditam as regras. E é exatamente sobre a figura de um jogador mestiço, cuja conduta não se adequava aos anseios da ordem e com o surgimento mais que proposital de um jogador negro “diferente”, é que no final dos anos 60 e início da década de 70, proporcionará a ditadura militar brasileira montar um “circo” sobre uma “masmorra.”
1 Franzini, Fabio. Corações na Ponta da Chuteira – Capítulos Iniciais da História do Futebol Brasileiro (1919 – 1938). p. 51-59
2 Fausto, Boris. História do Brasil. p. 367
3 Gomes, Ângela de Castro. A Invenção do Trabalhismo. p.175
4 Franzini, Fabio. Corações na Ponta da Chuteira – Capítulos Iniciais da História do Futebol Brasileiro (1919 – 1938). p. 66-67
5 Santos, Joel Rufino. História Política do Futebol Brasileiro. p. 53-54.
6 Franzini, Fabio. Corações na Ponta da Chuteira – Capítulos Iniciais da História do Futebol Brasileiro (1919 – 1938). p. 62-64
7 Santos, Joel Rufino. História Política do Futebol Brasileiro. p. 34
8 Santos, Joel Rufino. História Política do Futebol Brasileiro. p. 34-35
9 Gonçalves, José Esmeraldo. “Futebol e Poder: Algumas considerações sobre o jogo da política” in: Dieguez, Gilda Korff (org.). Esporte e Poder. p. 24
10 Santos, Joel Rufino. História Política do Futebol Brasileiro. p. 70-71
Show de bola esta união do futebol com todo o contexto social. Esta visão do futebol brasileiro me agradou demais. Parabéns pelo texto sensacional!!!
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